A dimensão
militante da obra de Lúcia Gomes, evidente tanto em seu temário como em seu
processo expositivo, fundamentalmente performático de exposição, faz pensar na
relação – e na distância – entre o homem e seu estar-no-mundo. Ou melhor: entre
o permanecer parado e o intervir. Essa relação/distância, alegorizada por
Lúcia, é um sintoma contundente da arte contemporânea, na sua disposição em
suplantar a materialidade convencional e convencionada da obra pelo dispositivo
temporal do momento. A arte não está mais na representação, nem no conceito,
mas sim na ideia: o que sobra, o que pode sobrar, depois do acting, do étant, de uma obra de arte de Lúcia Gomes? Não sobra a matéria, não
sobra o conceito. Sobra apenas o registro, sempre eventual e relativo ao
indivíduo que o executa e a subjetividade legada: a ideia, a sensação, a
memória, o estar –no-mundo, o pertencer –ao-mundo.
Lúcia
alegoriza a obra de arte. Para ela, a obra de arte é o ato, fugaz, temporal,
imaterial que se transforma em matéria no tempo do instante. Esse ato tem o
poder de refletir a personalidade social e política da artista, seu engajamento
num mundo que, por vezes, pode ser perverso e hostil. Em alguns artistas esse
reflexo é mais perceptível do que em outros; talvez porque haja, nesses
artistas, o desejo de se fazer perceber enquanto sujeito do ato de criação.
Então, de maneira peremptória, sua produção artística acaba contendo esse
dispositivo de autorreflexão, que marca, que chama atenção, para a sua forma de
estar-no-mundo. Lúcia Gomes pertence a essa família de artistas e sua arte
possui esse dispositivo reflexivo do seu estar-no-mundo, em que fazer arte é
uma experiência vital, plena de sentir-o-mundo.
Sua arte
procura o outro, esquadrinhando aquele com quem a artista passa a dividir seu
sentir-o-mundo, dividir o seu pesar, o seu sofrer, mas também a sua alegria, o
seu amor, o seu estar-no-mundo e sua arte. Aqui a arte toma uma forma que se
completa somente quando esta forma toca o outro, e nesse tocar sua arte ganha
sentido, vivo no e para o outro. E nessa relação artista-obra-outro, na
partilha, sua arte se mostra ao mundo na composição artística inteira de vigor.
Suas obras, seja pelo
idílico, seja pelo lúdico, seja pelo crítico, captura nossa visão e nossos
sentidos, fazendo-nos entrar, através de suas formas e de suas performances, em
um universo social crítico e politizado, mas também lúdico. Isso tudo é sentido
com mais intensidade porque Lúcia faz o espectador sair de seu estado de
passividade, inserindo-o na ação, fazendo-o também autor, performático, do
movimento artístico, do ato; isso ocorre em STOP quando o espectador saboreia o
pirulito com cabo de frio e cortante do prego. No PIPAZ e no prazer infantil do
empinar papagaios. No RESISTÊNCIA que remete ao universo infantil de seus balões.
Sua arte nasce
para o outro, caminha em direção ao outro e completa-se no outro. Lewis Hyde
coloca, em A Dádiva, que a arte é uma
dádiva, pois cria um vínculo emocional com o espectador. A arte de Lúcia nasce
nesse intuito, de partilhar, de criar algo no outro; portanto Lúcia doa, dá ao
outro algo que lhe pertence, e aí estabelece o vínculo, no ato da construção da
obra. Em suas instalações performáticas quem dá vida a obra não é somente a
autora, pois a autora leva seus espectadores a participarem da obra e darem
vida à obra; nesse momento ela doa a si e a obra, ela doa o seu ser-o-mundo.
Nessa
exposição, acompanhada de atos performáticos que ocorrem simultaneamente em
Belém, encontraremos dois momentos. No primeiro momento, podemos enquadrar as
obras produzidas no universo regional amazônico, na sua terra natal, com
elementos e referências culturais amazônicas, obras que serão reproduzidas
nesse espaço como o “Nem que L. tenha 100
anos”, “STOP”, “Resistência”. Observamos nesses atos
performáticos a relação binária entre a dor e o amor, entre o social e o
político, entre a denunciar da injustiça e a cumplicidade com a dor, que não é
só a dor do outro, mas da artista também. Esse primeiro momento se caracteriza
por uma estética própria ao universo regional amazônico, permeada por elementos
daqui, como o pirulito de melado, o suporte que o vende, a cobra grande, a
chita, as formas de empinar o papagaio, a periferia usada para seus atos
artísticos e políticos - outra característica binária presente.
O segundo
momento presente nessa exposição refere-se ao seu estar-no-mundo autrement, diferenciado, pertencente a
um universo cultural distante daquele que a gestou enquanto ser-no-mundo. A
artista deixa-se absorver por esta nova forma de estar-no-mundo e transforma a
estética de sua arte. Lúcia ganha uma nova forma de estabelecer contato com o
mundo; e sua produção artística ganha novo contorno através do traço; e com novo
traço cria novas formas de estabelecer contato com o outro, mais perene do que
ação. Notamos aí também uma dicotomia, entre o fugaz presente em suas ações, e
a permanência presente nas imagens.
Observamos aí a influência de uma nova paisagem presente em seus
desenhos; a cor se modifica, torna-se mais forte, intensa, sem gradações. Há a
presença das cores primárias com maior intensidade, seja através do amarelo do
tucupi, seja através do vermelho da China – evocação daquilo que a artista já
viveu, seja o azul do céu. Mas existe principalmente, esse universo infantil
colorido que nasce na e da brancura da neve, elemento estético novo,
diferenciado de suas elementares referência cultural. Sim, a temática é
amazônica, é paraense, é daqui, mas sutilmente mudam seus elementos estéticos.
Aparecem as montanhas, o castelo, a neve, o verde que não é o amazônico, o rosa
que evoca a feminilidade. Esses novos traços que evocam um expressionismo
alemão, um Kirchner em Ano Novo na
Marujada de Boa Vista Kopie; e também evocam um Miró, em A gata da Aninha pegando Sol. Essa Lúcia
que brinca com traços!